Para compreender o brincar heurístico

Maria Belintane | 18 ago 2020

Para compreender o brincar heurístico

Adaptado por Maria Belintane

Esse texto é uma adaptação do original “O BRINCAR HEURÍSTICO: CRIANÇAS MUITO PEQUENAS EM AÇÃO. DAL COLETO, Andrea Patapoff.; MANTOVANI DE ASSIS, Orly Zucatto. LPG/FE/UNICAMP. Anais XXVI Encontro Nacional de Professores do PROEPRE. 2013.

O brincar heurístico é fundamental para o desenvolvimento dos bebês e crianças pequenas em contextos de creche, no que especificamente concerne ao cesto dos tesouros como mais um incremento das oportunidades lúdicas neste segmento de ensino.
Além de favorecer as interações sociais entre os bebês essa prática pedagógica oferece inúmeras possibilidades para que os pequenos possam explorar ativamente diversos objetos e, consequentemente, conhecê-los pelo modo de utilizá-los.

Trata-se de uma prática pedagógica coerente com as necessidades das crianças no período sensório motor em que elas constroem o real por meio dos instrumentos cognitivos de que dispõem, isto é, seus esquemas de ação. Os brinquedos e as oportunidades de ação oferecidas são de grande valor, pois as crianças estão motivadas a executá-las. […]

Uma reação de curiosidade e alegria pode ser percebida quando uma criança se vê diante do cesto do tesouro. O balançar dos braços, risos e gritos demonstram o interesse que o bebê expressa em relação a esse material pedagógico. É indubitável a necessidade dos pequenos de agir sobre objetos que lhes são oferecidos. Eles não conseguem resistir a tocar ou explorar qualquer coisa que lhes chamam a atenção. As crianças evoluem por meio dessa interação ativa com as pessoas e com os materiais que a rodeiam, portanto, ao manipular objetos concretos, as crianças observam, buscam, agarram tudo o que está ao seu redor. Escolhem objetos, pessoas para brincar, exploraram e reagem aos diversos acontecimentos que ocorrem.

Bebês e crianças pequenas são verdadeiros exploradores. Por isso, é importante que o ambiente em que a criança esteja inserida ofereça oportunidades para que ela possa: ouvir, agitar, engatinhar, pegar, apertar, fazer barulho, sacudir, cheirar, agarrar e brincar à sua maneira e a seu ritmo.

Segundo Piaget, o conhecimento de um objeto implica, necessariamente, ação e transformação. É agindo sobre os objetos que os indivíduos são capazes de observá-los, de assimilá-los de estabelecer relações entre eles, deslocando-os, combinando-os, ligando-os, dissociando-os e reunindo-os novamente. […]

A criança ao explorar os objetos que lhes são oferecidos, descobre as relações que existem entre eles – que uma tampa encaixa em um determinado frasco e não em outro, que um copo menor cabe dentro de um maior, que há objetos que rolam outros não saem do lugar. Descobertas simples como essas por meio de aprendizagens ativas que implicam a interação entre a criança e os objetos envolvem tanto a atividade física de interagir com os objetos para produzir os efeitos desejados quanto a atividade mental, ao interpretar e relacionar os efeitos de sua ação sobre os objetos, no caso das crianças que já possuem a função simbólica.

Para compreender o mundo imediato dos objetos, as crianças devem interagir com eles (segurando, apertando, encaixando, amassando, cheirando, saboreando, ouvindo os sons que ele produz). Por meio da exploração ativa, as crianças podem satisfazer suas curiosidades e, principalmente, obter respostas às suas próprias questões. […]

Durante o período sensório-motor a criança interage com o mundo por meio dos sentidos e das ações e, progressivamente, busca novas conquistas. No entanto, interessa-se apenas por seu ambiente imediato, coordena movimentos e percepções para atingir metas em curto prazo; consegue superar e dominar as relações meios e fins; explora intensamente as características dos objetos e age para alcançar uma meta distante no tempo ou no espaço.

De acordo com o autor, todas as ações têm dois aspectos, um físico-material observável, no qual a atenção do sujeito é orientada para a especificidade do acontecimento e um aspecto lógico-matemático no qual o sujeito é orientado para o que é geral na ação que produziu o acontecimento. […]

As crianças muito pequenas precisam de diversas vivências sensoriais, pois o seu cérebro está predisposto para a ação. Nesta perspectiva, os professores precisam estar atentos às características sensório motoras que evocam a necessidade de criar estratégias privilegiadas que apelem para os sentidos da criança, materiais e situações que favoreçam a liberdade de escolha e para que possam sentir-se intrinsecamente motivadas e participantes.

Diversos estudos Mantovani de Assis (1976), Goldschmied e Jackson (2006), Portugal (1998), Oliveira-Formosinho (2002), Hohmann e Post (2011) têm apontado que os ambientes educativos para crianças de 0 a 3 anos precisam atender às suas necessidades sociais, afetivas, cognitivas e físicas das crianças para que estas se desenvolvam como pessoas seguras e criativas. Essas necessidades são consideradas na proposta apresentada por Goldschmied e Jackson (2006) para contextos de creche. O jogo heurístico explicado pelas autoras como uma atividade que “envolve oferecer a um grupo de crianças, por um determinado período e em ambiente controlado, uma grande quantidade de tipos diferentes de objetos e receptáculos, com os quais elas brincam livremente e sem a intervenção de adultos” (p.147).

O brincar heurístico

O brincar heurístico é uma atividade de descobertas, exploração, de concentração e atenção, a partir de sua própria atividade. Nesta proposta o professor tem que preencher uma cesta com objetos (cesto do tesouro) do cotidiano e escolhido para que as crianças possam descobrir e desenvolver o tato, o paladar, o olfato, a visão, o som e os movimentos do corpo.

O cesto dos tesouros é um jogo heurístico, isto é, uma brincadeira de descobertas que pode ser proposto para crianças de 6 a 10-12 meses, pelo fato de ainda não se locomoverem com autonomia, no entanto, mesmo com apenas dois anos as crianças já conseguem manter-se concentradas na atividade, mas é necessário oferecer-lhe uma variedade de materiais bem maior e objetos novos que lhes sejam interessantes. Este jogo é bastante apropriado para crianças que se encontram na fase de “experiências para ver”1 na qual, como pequenos cientistas elas repetem suas ações modificando-as constantemente para ver o que acontece com os objetos a partir das modificações introduzidas nas suas ações. […]

Recomendações para organização didático-pedagógica

  • É importante que o professor compreenda os objetivos desta proposta pedagógica, para que haja comprometimento com a ideia.
  • O material deve ser organizado cuidadosamente, para que a criança tenha o prazer de fazer novas descobertas e invenções.
  • Devem ser organizados em uma cesta de vime2 com no mínimo 15 variedades.
  • É importante que o espaço esteja planejado para esta proposta, este precisa ser amplo para que as crianças possam movimentar-se livremente.
  • Todos os demais materiais da sala devem ser guardados durante esta proposta.
  • O tempo pode variar em cada turma, no entanto, o aconselhável é que fiquem por 30 minutos ou mais.
  • O adulto não deve interferir nas descobertas das crianças.
  • O professor deve certificar se as crianças estão confortáveis e seguras;
  • Quando as crianças ficam altamente concentradas pela exploração, normalmente os objetos ficam espalhados pelo chão, por isso, eles precisam ser reorganizados de tempos em tempos, pelo professor, para que o material fique convidativo;
  • Chamar atenção das crianças 5 minutos antes do término para que elas contribuam com a arrumação, a fim de que não haja pressa e que a arrumação seja prazerosa tanto quanto o brincar em si. É recomendável que o professor proponha uma brincadeira (exemplo: escravos de Jó ou cantigas para organizar a arrumação de modo que as crianças encontrem prazer ao realizar esta atividade).

Os materiais

A montagem dos cestos depende do olhar imaginativo dos educadores quanto aos estímulos sensoriais, porque não existe uma regra fixa sobre o que deve conter, mas é importante que sejam apresentados de uma maneira atraente.

Entretanto, as autoras Goldschmied e Jackson (2006) sugerem alguns materiais como:

  • objetos naturais (pedras, conchas, cone de pinho, caroço de abacate, penas, pedaço de bucha natural, entre outros.);
  • objetos feitos de materiais naturais (alças de sacolas feitas de bambu, bolas de fio de lã, pincel de barba, pequena escova para sapatos, entre outros);
  • objetos de madeira (apito de bambu, aro de cortina, colher ou espátula, pregadores de roupa, entre outros);
  • objetos de metal (apito de escoteiro, coador de chá, espremedor de alho, espremedor de frutas, pequeno funil, sino, entre outros.);
  • objetos feitos em couro, têxteis, borracha e pele (bola de borracha, bola de golfe, bola de tênis, bolsa de couro, bonequinhas de retalhos, saquinho de pano contendo lavanda, alecrim, tomilho, cravo da índia, entre outros);
  • objetos de papel, papelão (cilindro de papel, papel impermeável, papel laminado, pequenas caixas de papelão, pequeno caderno com espiral).

No cesto, não deve haver objetos de plástico e nenhum brinquedo comprado e que a maioria deve ser de uso comum e do cotidiano dos adultos, pois a maioria dos brinquedos dos bebês no cotidiano já são desse material, fato este que não permite outros tipos de experimentações. Os materiais, também, devem ser conservados, limpos, intactos e de tamanhos adequados para que não possam ser engolidos.

A grande variedade de objetos permite que as crianças possam brincar com tranquilidade, por um bom tempo podendo desfrutar as sensações e descobertas que os objetos oferecem (formas, cores, cheiros, texturas, espaços, pesos e textura, entre outras características) e demonstram uma grande necessidade em provar a consistência das coisas, por isso, levam quase todos os objetos à boca e suga-os.

Goldschmied e Jackson (2006) salientam a motivação dos pequenos quando estão explorando os materiais, uma vez que os bebês por sua curiosidade natural sentem-se altamente atraídos pela diversidade de objetos colocados à sua disposição. A variedade de objetos favorece a aquisição do conhecimento físico, que consiste em descobrir suas propriedades. É assim que ela percebe que os objetos de madeira e de ferro não podem ser quebrados. Dessa forma, ela descobre que os objetos reagem de maneiras diferentes à mesma ação. Apalpar, pegar, apertar, dobrar, sacudir são alguns exemplos de ações por meio das quais o conhecimento físico é estruturado (DAL COLETO, 2006).

Vale ressaltar que o brincar heurístico por meio do cesto de tesouros oferece várias oportunidades para observar a interação entre os bebês em uma idade na qual se costumava dizer que eles não teriam interesse uns pelos outros. […]

Num ambiente que oferece oportunidades de interações adequadas, os bebês e as crianças muito pequenas agem com crescente autonomia. A presença atenta de um adulto proporciona segurança e promove as interações que são manifestadas com um olhar, um sorriso ou qualquer outro gesto que sejam suficientes para estar em contato uns com os outros.

Atividades foram realizadas por educadores de creche que trabalham com crianças de 6 a 18 meses os quais participaram do curso de formação de professores Programa de Educação Infantil e Ensino Fundamental – PROEPRE (0 a 3 anos).

  Grupo I (6 a 12 meses): Foram oferecidos vários objetos de metais no cesto dos tesouros. Ao colocá-lo no centro de uma roda, as crianças a princípio ficaram receosas e apenas ficaram observando. A BEA (11m.) aproximou-se do cesto e pegou um batedor de ovos, em seguida outras crianças foram aproximando-se e cada um buscou algo de seu interesse, como, por exemplo, uma caneca, um prato, correntes, funil, coador de chá, espremedor de limão, molho de chaves, entre outros. Curiosa BEA (11 m.) observava LI (9 m.) com a caneca na mão. De repente a BEA aproximou-se de sua colega e colocou o batedor de ovos dentro da caneca e batia insistentemente produzindo assim um barulho. LI, incomodada tirou a caneca, buscou uma espátula do cesto e repetiu a mesma coisa que a BEA, começou a batê-la na caneca. Nesta mesma turma, outra criança o MAT (12 m.) pegou o prato, colocou uma corrente de metal sobre ele, pegou uma colher e erguia a corrente como se fosse espaguete, levantava a corrente, com a colher várias vezes na altura de sua cabeça. Neste momento, BEA (11 m.) foi até MAT (12 m.) e puxou a corrente e a colocou em seu pescoço como se fosse um colar.

Grupo II (12 a 18 meses) – O cesto continha uma diversidade de materiais, WE (13 m.), muito curioso, foi logo pegando o urso de pelúcia, apertou abraçando-o e logo em seguida já pegou uma caixinha de papel sacudiu e amassou. Buscou o coador de café e pôs em sua cabeça, como se fosse um chapéu e colocou o coador na cabeça de outras crianças que estavam próximas a ele. TAI (12 m.) pegou um cone e um pincel, rolou o primeiro o cone no chão e demonstrou surpresa quando enfiou o pincel dentro do cone e viu que este aparecia do outro lado. THA (13 m.) pegou o canudo e o levou a boca começando a assoprar. Logo em seguida, pegou o pincel e tentou pintar a mão, em seguida foi a vez da caixa de ovos, na qual colocou dentro dela tampinhas de garrafa no lugar dos ovos. Posteriormente, manuseou uma pequena caixa, abriu, colocou a mão dentro, depois pegou outro pote igual e tentou colocá-lo dentro do mesmo.

Grupo III (10 a 18 meses) – Sem nenhuma intervenção a professora colocou a cesta no chão, as crianças, imediatamente, dirigiram-se até ele. YU (13 m.) pegou a lata maior e instantaneamente bateu com a mão no fundo como se fosse tambor. Soltou a mesma e voltou a tirar os objetos da cesta. Em seguida, tentou abrir uma das latas. Depois houve a tentativa de tampá-la com um objeto maior, tentando, aproximadamente, por 3 minutos, girando e observando. Logo após, pegou uma colher, bateu na lata sorriu e continuou executando a ação. Encontrou o pandeiro, batucou, pegou duas colheres e bateu nas rodinhas. Ficou contente com a descoberta. Sorriu, foi até a professora mostrou o que estava acontecendo. Depois foi até os colegas e repetiu a ação. DA (13 m.) quis a cesta toda para ela, empurrou os colegas e gritou, até que percebeu que havia vários objetos, se envolveu com uma caneca, bateu no chão, colocou um colar de contas grande dentro e a levou a boca como se estivesse tomando algo.

Outro aspecto que se observa nos registros são as condutas nas interações entre as crianças. A partir do quadro das condutas de episódios interativos criado por Grana5 (2011) a conduta de observação aparece nos cenários apresentados quando BEA – do Grupo I – fica atenta ao objeto de sua colega LI. Logo em seguida, a conduta imitativa aparece quando LI repetiu as ações de BEA ao também fazer barulho com a espátula na caneca. A conduta impositiva aparece no cenário em que a BEA foi até MAT e puxou a corrente e a colocou em seu pescoço, impondo sua vontade sobre ele. […]

  O brincar heurístico visa contribuir para a estruturação da inteligência prática e das interações sociais entre as crianças que estão envolvidas nessa brincadeira. Por fim, espera-se que este contribua para que professores e educadores percebam e reconheçam as formas particulares que a criança pequena possui para abordar o mundo, comunicar e construir significados. A partir desses conhecimentos o professor / educador poderá compreender a importância de enriquecer suas ações educativas para potencializar e melhorar a qualidade da educação no contexto de creche.

Sugestão de vídeos sobre o brincar heurístico – para inspirar

https://www.youtube.com/watch?v=JaK07pQYeO0

https://www.youtube.com/watch?v=_aavCuKmMvc

Referências

DAL COLETO, P. A. A atuação de professores nas series iniciais do ensino fundamental como facilitadores das interações sociais nas atividades de conhecimento físico. 192 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

FORMOSINHO, J.O. Modelos Curriculares para a educação de Infância. Porto: Porto Editora, Coleção Infância, 2002.

GOLDSCHMIED, E.; JACKSON, S. Educação de 0 a 3 anos. O atendimento em creche. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

KAMII C.; DEVRIES R. Piaget para educação pré-escolar. Porto Alegre: Artes médicas, 1991. HOHMANN, M., POST, J. Educação de bebés em infantários.

Cuidados e primeiras aprendizagens. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

MANTOVANI DE ASSIS, Orly Z. A Solicitação do Meio e a Construção das Estruturas Lógicas Elementares na Criança. Tese de Doutoramento. Campinas: FE/UNICAMP, 1976.

PIAGET, Jean. Biologia e conhecimento. Petrópolis. Editora Vozes, 1973. Título original: Biologie et connaissance,1959.

Development and learning. Journal of Research in Science Teaching, XI, Nº 3 (1964). Traduzido por Maria Lucia Faria Moro.

Development and learning. Journal of Research in Science Teaching, XI, Nº 3 (1964). Traduzido por Maria Lucia Faria Moro.

PORTUGAL, Gabriela. Crianças, famílias e creche – uma abordagem ecológica da adaptação do bebé à creche. Porto: Porto Editora, 1998.