Infância Na Quarentena

Maria Belintane | 14 mai 2020

Infância Na Quarentena

FLÁVIO PAIVA

O distanciamento social preventivo decorrente da pandemia de Covid-19 escancarou portas e janelas dos lares à comunicação mercadológica por meio das telas transmissoras da vida digital. Esse cenário, urdido a partir da suspensão de aulas no espaço físico escolar e da intensificação da convivência não habitual de pais e filhos, está posto e requer atenção especial, sobretudo com relação aos cuidados com a infância.

Nessas circunstâncias, o crescimento da exposição da criança à publicidade, a dimensão relacional no âmbito da família e o que, das atitudes tomadas no tempo presente, poderá resultar de positivo para a sociedade formaram os campos de reflexões da reunião virtual do Conselho Consultivo do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, realizada quarta-feira (29/4), para reorientar suas iniciativas frente à excepcionalidade da atual conjuntura.

Assim como o Criança e Consumo, pessoas e instituições comprometidas com questões da infância têm nesse período crítico o desafio adicional de direcionarem suas ações considerando as contingências de um esperar sem data para terminar que produz movimentos de tensão. Nos eventuais conflitos gerados pela presença domiciliar em tempo integral, a criança tende a encontrar nas telas a passagem secreta para o isolamento do isolamento.

A sensação de intrusão, ocorrida no mesmo espaço que a lógica ordinária dos horários de rotina batizou de lar, deixa meninas e meninos ainda mais suscetíveis aos assédios do consumismo. O que pode parecer um alívio para adultos e crianças afetados com a proximidade continuada dia e noite torna-se mais e mais exaustivo à medida em que o estímulo à vontade de consumir tenta prover o excesso de falta.

O apoio à criança submetida a esse estado de estresse passa pelo apoio aos pais, tendo como ponto de partida o princípio de que todo pai e toda mãe deseja o que considera melhor para filhas e filhos, e que, seja qual for a configuração familiar, seus integrantes têm conceitos, táticas e métodos de superar a reclusão que precisam ser compreendidos. Gestos solidários não devem ser invasivos. As pessoas precisam ter noção do sentido da travessia e, para isso, necessitam ter a oportunidade de desenvolver percepções mais amplas do que o problema em si.

A realidade imediata requer elementos engrandecedores do mistério da vida, em um duplo movimento de conteúdos que, de um lado, possa atrair e subsidiar os pais e, de outro, que seja encantador e adequado à infância. Diante da irrupção do novo corona vírus, a vacina de arte e de literatura é recomendável para evitar o contágio entre o que se está passando e o que haverá depois, não se sabe quando. O apelo ao poder reunificador do imaginário é imprescindível para a transposição das estatísticas ao plano da existência.

O diálogo sob os efeitos da pandemia abraça razão, sentir e consentir como partes da totalidade dramática desse evento planetário. A pressão causadora de discordâncias entre muitos dos que estão recolhidos em casa passa por esforços de conciliação como necessidade de respiro do ser. A conjunção de cuidados para o bem-estar de adultos e crianças na quarentena depende muito dos estímulos a trocas sensíveis e seu potencial de colocar a crise a serviço da renovação de valores e de comportamentos capazes de fazer brotar um mundo mais amável.

Disponível em: https://mais.opovo.com.br/colunistas/flaviopaiva/2020/05/05/infancia-na-quarentena.html Acesso em: 11 maio de 2020

Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância.