Eu estava lá – 1º

Maria Belintane | 14 mai 2020

Eu estava lá – 1º

Suely Galli

 LEPED/2017

Mês de novembro. Ano letivo terminando. Na sala de reuniões o diretor novato convoca os professores para conversar sobre as mudanças nas atribuições de aulas do próximo ano.

A escola e o corpo docente, vinham de uma direção de mais de vinte anos onde tudo transcorria sem conflitos, sem necessidades de ajustes. Ano após ano tudo se passava sem transtornos e nenhum acontecimento.

Com a aposentadoria da diretora “considerada uma mãe”, chegou o novo diretor, professor de matemática concursado. De uns 45 anos alto e magro, o cinto da calça ajustando a franzir na cintura, óculos de aros escuros, lentes grossas, compensavam a miopia e um leve estrabismo. Um jeitão simplório que parecia pisar em ovos desde os primeiros dias de sua posse. No entanto, não escondia sua firmeza quando a passos largos percorria diariamente o pátio cujas salas se abriam para ele.

Márcia era alfabetizadora renomada na escola, no bairro, na cidade! As crianças chegavam no início do ano para ela que os conduzia metodicamente rumo à “prontidão” para leitura e primeiros ditados que perfaziam o domínio da leitura e escrita, além de servir de recurso para avaliar a audição, a motricidade, a atenção. Etc. Márcia usava famílias silábicas para ensinar as crianças, e isso passara a fazer parte de seu hábito mesmo longe da sala de aula, ao conversar socialmente, ela falava sempre silabando como se o ouvinte estivesse escrevendo as palavras ditadas por ela.

Formada nos tempos áureos da Escola Normal, era uma mulher elegante, aparentava certo conforto financeiro. Se destacava por sua presença altiva, sorridente de fala compassada, entrecortadas em sílabas. Confesso que quando estagiei na sala dela, eu não acreditava no que via e ouvia. Mas era real. Aquilo me acontecia!

O diretor cumprimenta a todos, apontando para água e café no canto da sala e dá início à reunião falando mais ou menos assim:

Para o próximo ano, teremos alguns remanejamentos para dinamizar e proporcionar novas experiências pedagógicas aos professores, compartilhando o que tem dado certo em suas séries.

Todos estavam apreensivos. E ele continuou:

Professora Márcia, sabemos de seu trabalho competente e dedicado nas classes iniciais de alfabetização. Agora a senhora terá oportunidade de, no próximo ano, atuar em uma quarta série. Terá liberdade de trabalhar por área junto as demais professoras da série, enriquecendo as atividades de leitura e escrita dos alunos que, na maioria, a senhora mesmo alfabetizou.

Márcia de olhos arregalados levou a mão à boca, disfarçando o espanto. Parecia perder o chão. As colegas entendiam perfeitamente seu pavor. E então ela diz:

Mas senhor diretor, estou há vinte anos alfabetizando, eu tenho muita experiência com a série inicial, nunca trabalhei em outra. Não pode fazer isso comigo! São vinte anos de experiência alfabetizando crianças ano a ano! E então o diretor fala:

Professora, a senhora tem vinte anos de experiências ou uma única experiência repetida por vinte anos?

Houve um silêncio na sala. Márcia engoliu as lágrimas, enxugou o rosto, tomou água dizendo:

Como assim?

E o Diretor novamente falou:

Dona Márcia a senhora é excelente professora e será uma oportunidade para as crianças da quarta série tê-la novamente com eles. Quanto a senhora, poderá ver como eles prosseguiram na leitura e escrita iniciada lá atrás.

O que aconteceu depois na reunião, não vem ao caso.

Em Larrosa, a experiência palavra do latim experiri, quer dizer, provar, experimentar. E ainda periri ou periculum de perigo. Na raiz indo-europeia é per, e se relaciona a ideia de travessia, de prova, como o pirata que se expõe num espaço desconhecido, indeterminado e arriscado, pondo-se à prova e buscando sua oportunidade, sua ocasião. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo, como algo que nos transforma na medida em que nos submetemos, nos deixamos abordar, tocar, desestabilizar.

Márcia foi desalojada de seu conforto previsível, sua postura ereta e segura de si, desenvolvendo sistematicamente seu método que sempre deu certo e continuaria dando, pois tornara-se sujeito definido pelo seu sucesso acumulado pelas certezas sobre o que dá certo! Deixou de ser firme, forte, impávida, inatingível, autodeterminada, definida por seu saber, poder e vontade, para sofrer de incertezas, perigos, porém receptiva, submetida.

Ela se deixou abordar, foi tocada pela oportunidade, aceitou a ocasião, fez a travessia!

Subsídios

NOTAS SOBRE A EXPERIÊNCIA E O SABER DE EXPERIÊNCIA*

JORGE LARROSA BONDÍA

Universidade de Barcelona, Espanha Tradução de João Wanderley Geraldi Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Linguística.

Suely Galli, Pedagoga, Mestre, Doutora com Pós-doutorado em educação, pesquisadora nas áreas de Formação Continuada, Tecnologias Educacionais e Inclusão das diferenças.